sábado, 5 de janeiro de 2013

Oscar Niemeyer



Oscar Niemeyer - Quem sou eu para condena-lo ao inferno

            Este homem, ateu de convicção e cristão de vida diária, vai ou não vai estar ao lado de Deus?
            Lendo Mateus 25,31-46 podemos chegar a alguma conclusão:

            Texto 01 - Luís Alonso Schökel

A ação do homem e das sociedades em suas relações mútuas têm uma dimensão transcendente que Deus conhece e sanciona. Essa ideia ou mistério se dramatiza na linguagem de um grande julgamento público e universal. Como antecedentes literários podem-se recordar: o rito de Js 8,32-35 completado com Dt 27,12-28,14; a nota escatológica de Is 24,21-22; os destinos opostos de ls 65,13-15; Dn 12,2 o indica ou implica; Sb 4,20-5,16 o descreve a seu modo.
Em primeiro lugar, o texto propõe um problema de dupla identificação:
a) fala de "todas as nações" pagãs ou de todas sem distinção?
b) os "irmãos menores" de Jesus são os cristãos ou todos os necessitados?
Uma interpretação minimalista diria que os pagãos são julgados de acordo como tratarem os cristãos. Resposta:
a) segundo a tradição bíblica, a expressão designa os pagãos. O texto o comprova, pois os cristãos não podem alegar ignorância, os pagãos sim. Mas antes disse que "a boa notícia do reino será proclamada a todas as nações" (24,14).
b) Embora Jesus tenha limitado sua missão "às ovelhas desgarradas da Casa de Israel" (15,24), compadeceu-se também dos pagãos necessitados e proclama uma mensagem universal. Pois bem, se num momento a parábola teve um alcance limitado, em seu estado atual parece exigir um alcance universal: os que creram em Jesus, pelo cumprimento de seu mandato serão julgados; os que não o conheceram, serão julgados pela fidelidade a seus valores.
O juiz é Jesus. O "filho do rei", na ocasião do casamento (22,2), é no julgamento o rei (cf. SI 72,1) que chega acompanhado da sua corte e toma assento no seu tribunal (cf. Dn 7,9-10; Dt 33,2; Zc 14,5). Perante ele comparecem "todas as nações". Inspirados em J1º 4,11-12, alguns quiseram tomar a parábola como descrição realista e até localizaram a cena no "vale de Josafá".
O julgamento será de separação (aphorizo): verbo de grande tradição no culto e na legislação (ver especialmente Lv 20,25s; Is 56,3); seu complemento são os bons, que são "separados" dos maus. Compará-Ios com ovelhas e cabras pode ser sugestão de Ez 34,17, que distingue entre ovelhas e bodes; ao passo que a ceia pascal admite sem distinção "cordeiro e cabrito" (Ex 12,5). O valor da direita e da esquerda é transcultural (cf. Dt 27,12-13), segundo a posição geográfica relativa).
O critério de separação são as obras de misericórdia, que se podem ilustrar com textos do AT e do NT (p. ex. Is 58,7; Pr 19,17; Mt 5,7; 9,13; 12,7; 23,23). Servem para especificar o preceito capital do amor ao próximo. Jesus fez-se próximo do necessitado e irmão dos pequenos.
Como em Dt 27-28, a sentença é pronunciada em forma de bênção e maldição: benditos (SI 115,15; Is 65,23), malditos (Jr 17,5; SI 37,22). A sentença será "herdar o reino" (1ºCor 6,9; 15,50; GI 5,21) ou ser lançados no. "fogo eterno" (Is 66,24; Dn 7,11; Ap 20,10).
A cena nos faz compreender que muitos, sem conhecer a pessoa de Jesus, se ajustam aos valores dele, na esfera do amor ao próximo. E isso decide o destino deles. 

Texto 02  - Isidoro Mazzarolo  (  http://www.mazzarolo.pro.br/  )

O julgamento não é um ato arbitrário ou um erro acidental da pessoa. Fazer o bem ou deixar de fazê-lo é uma questão de comportamento e de conduta de uma vida inteira. Esta metáfora em seis aspectos não quer apontar para um erro acidental ou esquecimento, do qual a pessoa pode redimir-se facilmente, mas indica a conduta de toda uma vida, uma opção pelo bem ou pelo mal. Aqueles que não acolhem escolhem odiar, oprimir e explorar, e não fazem uma única vez, fazem todas as vezes e quantas forem necessárias.  Aqueles que exercem a misericórdia e a justiça assumem este comportamento e todos os riscos inerentes como críticas, perseguições, prejuízos e até a morte (5,11-12).
O julgamento é consequência da opção fundamental de uma pessoa ou da direção que alguém dá a todos os seus atos. Uma pessoa má pode fazer algum ato bom por interesse, por conveniência ou para tirar proveito depois. Uma pessoa boa pode cometer um ato errado, mas se arrepende e sua conduta continua boa. O que define estar ao lado direito ou esquerdo do Filho do Homem e receber um convite de ingresso "vem, bendito" ou então ser colocado do lado esquerdo e ouvir "vai, maldito" não depende de algum erro ou acerto, mas de uma opção existencial para o bem, pelo próximo, pela justiça ou pelo mal, pela impiedade e pelo pecado. Os justos serão convidados ao paraíso eterno (25,46) e os outros, para o lugar que escolheram: o castigo eterno, pois, com sua vida e obras, negaram a caridade, rejeitaram a justiça e não acreditaram no amor.
           

A partir dessa ultima frase eu lanço uma pergunta: para ser cristão é necessário fazer parte de alguma igreja cristã ou até mesmo acreditar na existência de Deus ? 
( Ricardo Naiff )

            

Bibliografias:
-- Luís Alonso Schökel - Bíblia do Peregrino. Ed. Paulus, São Paulo – 2006.
-- Isidoro Mazzarolo – Evangelho de São Mateus. Mazzarolo editor, Rio de Janeiro – 2005.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

1 = O CONTEÚDO DA BÍBLIA



PRIMEIRA PARTE
PALAVRAS DE HOMENS

Começaremos pelo mais evidente da Bíblia, aquilo que ninguém questiona: o fato de ser literatura, quer dizer, seu aspecto nitidamente humano.            


1 = O CONTEÚDO DA BÍBLIA

            A Bíblia contém 73 escritos. { São 73 escritos, quando se consideram Jeremias e Lamentações como duas obras diferentes (como na realidade o são); serão 72. quando se consideram como um só escrito. (Lamentações como parte de Jeremias). } Os 73 escritos estão agrupados em dois "Testamentos", o Antigo e o Novo. Destes, 27 escritos pertencem ao Novo Testamento, que é literatura nitidamente cristã. O Antigo Testamento é literatura judaica.
            O termo "testamento" é uma tradução equívoca do original hebraico berit, que significa "aliança", "pacto". Não se referia à última vontade, mas ao conceito de aliança, aquela aliança feita com Moisés, que é o coração do Antigo Testamento e, depois, aquela que foi selada com a morte de Jesus (Lc 22,20; 2Cor 11,25). Traduzido este vocábulo para o grego (diatheke),começou-se a entender em sua acepção de última vontade, de testamento, e assim se traduziu para o latim (testamentum).
            Os judeus, obviamente, consideram como Bíblia o que nós, cristãos, chamamos de "Antigo Testamento", porque não reconhecem a vinda de Jesus como a do Messias, e os escritos cristãos não têm para eles caráter sagrado. A divisão da Bíblia em testamentos é cristã. O qualificativo "antigo (testamento)" não se deve entender como obsoleto ou como velho, mas como o primeiro com relação ao posterior. Alguns propuseram, por isso, que se falasse antes em "primeiro testamento". Somente se pode falar de "antigo" testamento, quando se admite como real a existência de um "novo" testamento, e essa distinção somos nós, cristãos, que a fazemos. Talvez seja mais correto falar de "Bíblia hebraica", para denotar a propriamente judaica, e de "Bíblia cristã", para designar a inclusão do Novo Testamento como parte da Bíblia por parte dos cristãos.
            Isto tem uma implicação importante: quando encontramos, em algum escrito do Novo Testamento, a menção de "Escrituras" (por exemplo, em Lc 24,27.32.45; Jo 5,39; 10,35; 2Tm 3,15) ou "Palavra de Deus/Senhor" (por exemplo, em Mc 7,13; At 6,2; 8,14), não se refere ao Novo Testamento como tal, mas antes ao Antigo Testamento, visto que o Novo Testamento ainda não existia. Recordemos que, quando se escreveu esta ou aquela obra do Novo Testamento, se fez como um escrito independente dos demais e sem idéia de que mais tarde seria agregado a outros para eventualmente fazer parte da Bíblia.
            A diferença entre a Bíblia católica e a protestante também será considerada quando falarmos dos Apócrifos. Baste por ora adiantar que não é questão de traduções, mas unicamente da admissão ou re­jeição de certos escritos como parte da Bíblia, todos eles judaicos (Antigo Testamento), e nenhum de fundamental importância.
            A ordem em que se encontram os escritos da Bíblia não é a ordem em que foram compostos. Gênesis não foi o primeiro a ser escrito, nem o Apocalipse foi o último. Encontram-se ordenados segundo temas e gêneros literários - todos os históricos juntos, os profetas juntos etc. Exceto o bloco que vai de Gênesis a Reis, a ordem dos escritos do Antigo Testamento pode variar de uma Bíblia para outra. Isto se deve ao fato de que a seqüência é diferente na versão hebraica e na grega (e latina). Retomaremos isto mais adiante, quando falarmos do cânon.
            Originalmente, nenhum dos escritos trazia um título como o que tem hoje. "Gênesis" (a primeira palavra deste livro, em grego, significa "origem, início"; em hebraico é bereshit) não era o título do primeiro escrito que encontramos na Bíblia, nem "Evangelho segundo Mateus" era o título do primeiro Evangelho que encontramos no Novo Testamento. Original era somente o texto. Os títulos foram colocados mais tarde por razões práticas, para distinguir um escrito de outro.
            Nenhum dos escritos da Bíblia estava originalmente dividido em capítulos e versículos. O códice Vaticano do séc. IV d.c. inclui marcas na margem que são divisões em "capítulos" (para Mateus tem 170 divisões que não são os 28 capítulos que usamos; para Marcos tem 62 divisões). Nos inícios do séc. XIII, Stephen Langton dividiu os escritos da Bíblia (em latim) em capítulos. Em meados do séc. XV, Isaac Nathan dividiu cada capítulo em versículos para facilitar as referências às passagens bíblicas, como fazemos hoje. Depois, em 1528, foi impressa a Bíblia completa traduzi da para o latim, dividida em capítulos e versículos por Sanctes Paginus. Em 1551, Robert Etienne publicou o Novo Testamento em grego com sua divisão em versículos e, alguns anos mais tarde, o fez com a tradução da Bíblia para o francês que ele havia preparado. Mc 12,26 proporciona-nos um exemplo da maneira na qual se citavam os textos bíblicos: "Não leram no livro de Moisés (= Êxodo), no da sarça (= capítulo terceiro) como Deus lhe disse ... (segue uma citação textual de Ex 3,6)".  Em Rm 11,2, São Paulo cita 1Rs 19,10, simplesmente mencionando como referência que é uma passagem da "história de Elias". As divisões por capítulos e versículos, embora muito práticas, nem sempre foram acertadas; ocasionalmente, cortam o texto onde não deveriam, por exemplo, o primeiro relato da criação conclui em Gn 2,4a e não no final do cap. I, como supôs quem dividiu este livro em capítulos; o último canto do servo de Javé em Isaías começa no final do cap. 52 e não no 53,1, como o supôs quem dividiu este livro em capítulos.
            A divisão dos textos em capítulos e versículos baseia-se nos manuscritos conhecidos naqueles tempos, basicamente na tradução latina de São Jerônimo (Vulgata). A Bíblia que lemos, em contrapartida, é tradução baseada em manuscritos mais próximos dos originais (tema sobre o qual voltaremos), nas línguas originais. Isso explica por que ocasionalmente nos surpreende a falta de um versículo: este não estava no original, por exemplo, em Mt 17,21; 18,11; Mc 9,46; 11,26; 15,28; Lc 23,17. Igualmente, há duas numerações dos Salmos, uma delas entre parênteses. Isto se deve ao fato de que as numerações foram feitas no texto latino (cuja numeração se preserva entre parênteses). A troca ocorre a partir do Salmo 9: a versão latina tinha como um só Salmo (9) o que em hebraico são dois, 9 e 10. Isso causou uma discordância correlativa: o antigo Sl 10 na Bíblia latina é o Sl 11 na hebraica, e assim sucessivamente.
            Os subtítulos que encontramos (e que variam de uma Bíblia a outra) tampouco são originais. Ocasionalmente, são equívocos: a parábola conhecida como "do filho pródigo" (Lc 15,11ss) não se centra no filho, mas no pai misericordioso, portanto, deveria ser intitulada "parábola do pai misericordioso" - além do que a parábola fala também do outro filho que ficou em casa.
            Do ponto de vista temático, a Bíblia não é tanto uma coleção de verdades eternas, mas um conjunto de testemunhos multiformes da relação de diálogo entre Deus e os homens, relação histórica e huma­namente vivida. Vista do lado de Deus, a Bíblia apresenta a história das ações de Deus na história dos homens, desde as origens até sua expressão definitiva em Jesus Cristo, e projetando-se para o futuro. Vista do lado dos homens, a Bíblia inclui experiências pessoais de muitos indivíduos, seu diálogo com Deus, suas atitudes de obediência ou de infidelidade, suas reflexões e sua sabedoria. Em outras palavras, levando em conta os diversos gêneros literários que encontramos na Bíblia e o fato de que ela abarca mais de um milênio de história, vem a ser a história singular, sempre atual (pois se fazem as mesmas perguntas, e se apresentam as mesmas atitudes humanas) do diálogo entre Deus e os homens, dos chamados de Deus e das sucessivas respostas dos homens. Os diversos personagens encarnam atitudes humanas que freqüentemente são representativas e expoentes das pessoas de hoje.
            Há algo mais que nunca devemos esquecer: os compositores dos diversos escritos da Bíblia escreveram para um grupo de pessoas concretas, para seu povo ou sua comunidade de então, daquele tempo. Isto significa que não escreveram pensando em nós, como já advertimos. Quando Isaías falou e escreveu, o fez para os judeus do séc. VIII a.C., e quando Paulo escreveu sua carta aos Romanos, foi para os cristãos de Roma da década de 50, respondendo a seus problemas e necessidades de esclarecimento que nem sempre são os nossos. Hoje em dia, falariam e escreveriam de outra maneira e a respeito de ou­tros problemas. Mas o que escreveram é em certa medida aplicável ainda hoje, a mensagem central continua válida, pois o ser humano é basicamente o mesmo: suas perguntas, atitudes, angústias, alegrias, esperanças continuam acontecendo hoje.
            Quando se diz "Antigo Testamento", a maioria pensa quase automaticamente em termos de história, a chamada "história sagrada" que líamos quando crianças e que se vê em filmes. Poucos estão conscientes de que a ênfase não havia sido colocada no que supostamente aconteceu, mas no que significa aquilo que se narra, na mensagem do episódio relatado. Por isso, entremesclam elementos mitológicos, anedóticos, históricos e afins. Além disso, se o Antigo Testamento se valoriza apenas como história, se deixarão à margem muitos outros escritos que não narram história, como os salmos, os escritos proféticos, os poéticos e os sapienciais.
            A Bíblia, como totalidade, apresenta do princípio ao fim um denominador comum: a relação de diálogo entre Deus e os homens. O único personagem que perdura é Deus; os outros aparecem e morrem, e são julgados segundo sua relação com Deus. Por um lado, Deus permanece sempre fiel em seu empenho de oferecer aos homens a prosperidade e a paz ao longo de sua história. É fiel à sua "aliança". Por outro lado, os homens se mostram instáveis: hoje, submissos e fiéis; amanhã, rebeldes ou indiferentes diante de Deus, até idólatras. Quando se observam os escritos do Antigo Testamento a partir do lado dos homens, se vê que é uma história das conseqüências de suas atitudes perante Deus: é uma história de êxitos, de alegrias e de fracassos e de frustrações, estreitamente relacionada com sua submissão humilde e confiante ou rebelde e auto-suficiente diante da vontade de Deus. Esta é, em síntese, a perspectiva fundamental a partir da qual se apresentam os diferentes escritos do Antigo Testamento, é o que se percebe muito claramente nos relatos. O Novo Testamento, por sua parte, põe em relevo essa vontade salvífica de Deus manifesta agora na pessoa de Jesus de Nazaré: "Deus amou tanto o mundo que enviou seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna" (Jo 3,16). No Novo Testamento também aparecem, uma ou outra vez, respostas fiéis e respostas distorcidas, até de oposição a essa vontade divina. 

Arens, Eduardo - A BÍBLIA SEM MITOS: UMA INTRODUÇÃO CRITICA – São Paulo: Paulus, 2007. pp 29 – 35.

OBSERVAÇÕES

Eu acompanho um Blog, o Teologia e Bíblia do Silvio Cezar José e hoje estava lendo uma postagem http://reinoutopico.blogspot.com.br/2012/10/como-ler-biblia-algumas-dicas.html

e percebi a necessidade de postar aqui um livro que já li: A BÍBLIA SEM MITOS: UMA INTRODUÇÃO CRITICA -- Eduardo Arens.




            OBSERVAÇÕES

            A Bíblia, o livro mais difundido no mundo, é, ao mesmo tempo, um dos livros mais incompreendidos. A Bíblia foi (e ainda é) utilizada para justificar não somente o autêntico caminho de Deus e para Ele, mas também ações condenáveis. Baseando-se na Bíblia, realizaram-se extermínios, guerras religiosas e tantas aberrações e crimes; e também, é baseando-se na Bíblia que se criaram seitas que desembocam em absurdos, como os suicídios coletivos em Jonestown (Guiana, 1978), em Kanungu (Uganda, 2000) e em outros lugares. Certamente, ninguém diria que a culpa dessa conduta é da Bíblia. O problema radica na maneira como se entende a Bíblia. O fato de que existam tantas ramificações no Cristianismo, chegando a várias centenas de grupos e seitas diferentes, é uma prova clara de que a Bíblia é entendida de diferentes maneiras por diferentes pessoas.
            Para algumas pessoas, a Bíblia é a revelação de Deus para todas as pessoas de todos os tempos, para outras é um conjunto de histórias pedagógicas e de prescrições éticas. Segundo uns, a Bíblia foi escrita como a palavra de Deus; enquanto, segundo outros, é simplesmente literatura. Alguns pensam que se deve tomar ao pé da letra tudo o que se lê na Bíblia, pois é a palavra de Deus em sentido estrito; enquanto outros pensam que o que ali encontramos não é outra coisa que um conjunto de memórias do passado impregnadas de mitos. Enfim, as maneiras de apreciar e de valorizar a Bíblia são muito variadas, o que se deve principalmente à idéia que cada um tem a respeito dela. Diferentes pessoas respondem diferentemente à pergunta: O que é a Bíblia?
            Enquanto se definia a Bíblia literal e estritamente como a palavra de Deus comunicada por inspiração divina a determinadas pessoas, não se pensava em perguntar quando e por que se escreveu este ou aquele livro, quem foi o escritor, se ele utilizou alguma tradição ou fonte de informação, se ele esteve influenciado pela situação histórica e cultural na qual vivia etc. Foi somente a partir de certas constatações literárias que, desde o séc. XVIII, se começou a ver a Bíblia do ângulo humano e histórico. Muito influenciou o descobrimento, no séc. XIX no Oriente Médio, de textos afins à Bíblia que são mais antigos do que os bíblicos, como os mitos mesopotâmicos da criação, salmos cananeus e provérbios egípcios. A informação obtida dos descobrimentos arqueológicos contribuiu muito para melhor situar e entender certos escritos bíblicos. Os estudos de lingüística e de literatura em particular abriram-nos os olhos para a importância dos gêneros literários. As ciências humanas ajudaram-nos a tomar consciência de que a Bíblia é comunicação baseada em tradições orais. (VEJA O ARQUIVO: MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA)

            Você conhece a Bíblia?

            Quando se põe a pergunta "você conhece a Bíblia?", muitos automaticamente pensam que se pergunta se eles conhecem as histórias ali narradas ou se são capazes de citar textos de memória, como se faz nos "concursos bíblicos". Mas conhecer a Bíblia não é questão de memorização de textos, nomes ou incidentes narrados, mas de compreensão. Quando a mãe diz conhecer seu filho, não quer dizer que tem arquivada em sua memória uma série de dados biográficos sobre ele, mas antes que sabe como ele pensa, como e por que reage a estas e àquelas situações, quer dizer, que é capaz de entrar no mundo interior de seu filho, de vibrar com ele. De maneira igual, visto que a Bíblia é um conjunto de testemunhos vividos, não de dados informativos, como veremos, conhecer a Bíblia é entrar em seu mundo, é saber como e por que se relatou aquilo que se escreveu, é vibrar com seus autores.
            Se você crê conhecer a Bíblia, trate de responder às seguintes perguntas com relação ao famoso relato chamado "sacrifício de Isaac", em Gênesis 22. Trata-se de uma história, de uma lenda ou de um mito? Por que se relatou? Quem tomou nota do diálogo entre Abraão e Isaac enquanto caminhavam a sós até o lugar do sacrifício? Deus falou com voz humana? É compreensível a mansidão do jovem Isaac ao deixar-se amarrar para ser sacrificado? Como entender que no v. 12 o anjo fale como se fosse o próprio Deus? Como se lembraram os narradores dos detalhes depois de mais de oito séculos transcorridos entre o tempo de Abraão (séc. XVIII a.C.) e o tempo em que se escreveram pela primeira vez (séc. X)?
            Saber muitos dados da Bíblia não significa automaticamente conhecê-la, da mesma maneira que saber ler não significa compreender o que se lê. Muitos crêem que basta saber ler para compreender a Bíblia, como se fosse um jornal de ontem. Nem sequer lhes ocorre que os escritos da Bíblia datam de pelo menos mil e novecentos anos e que foram redigidos, a maioria, no Oriente Médio, com tudo o que isso implica. Só se começará a conhecer e compreender a Bíblia quando se estiver familiarizado com sua origem e com sua formação, quando se souber por que foram escritos os diferentes livros, e algo do mundo daqueles para os quais foram escritos diretamente, sua cultura e circunstâncias. Para conhecer e compreender a carta de São Paulo aos Gálatas, por exemplo, temos de familiarizar-nos com as circunstâncias sob as quais ele a escreveu, o que motivou o apóstolo (emissor) a fazê-lo, assim como as realidades culturais, políticas, religiosas e outras nas quais viviam os gálatas (receptores).
            Para conhecer e compreender a Bíblia, deve-se possuir um mínimo de informação sobre ela, informação que ela mesma nos proporciona. Para ilustrar tudo o que se vem dizendo, algumas perguntas servirão de guia:
          = Você sabia que a Bíblia contém muitos escritos e que estes são muito diferentes uns dos outros? Sabia que nem todos são história?
         = Você sabia que esses escritos foram compostos por pessoas concretas, que viviam em tempos distintos e sob circunstâncias diferentes? Que sua composição vai do séc.X a.C. ao séc. I d.C., ou seja, que cobre um milênio?
          = Você tomou conhecimento de que a mentalidade (sua idéia do mundo e do homem) de seus compositores é típica do Oriente Médio, muito diferente da nossa?
          = Você sabia que muitos escritos foram compostos muitas décadas, alguns até séculos, depois que sucederam os acontecimentos narrados? E já pensou no que acontece quando algo é transmitido oralmente durante muito tempo de uma geração a outra?
          = Você sabia que os escritos que constituem a Bíblia não foram escritos pensando em nós, mas para destinatários bem concretos, quer dizer, que não nos tinham em mente?
          = Você poderia explicar por que tantas traduções da Bíblia?
          = E poderia explicar por que em certos textos Deus aparece como vingativo e em outros como compassivo? Aliás, por que muda de opinião? Deus é temperamental?
            = Por que temos duas histórias diferentes da monarquia de Israel (Samuel-Reis e Crônicas) e quatro Evangelhos diferentes, e não um só? Em poucas palavras, você sabe como se gerou e se formou a Bíblia? É o que queremos ver com atenção nas páginas seguintes.

            Por onde começar?

            Quando olhamos atentamente a Bíblia, vemos que ela contém muitos escritos: Gênesis ... Êxodo ... Reis ... Isaías ... Amós ... Salmos ... Evangelhos ... Isto significa que são escritos independentes uns dos ou­tros, como um livro é independente do outro. No início, os escritos não estavam todos juntos, como os achamos hoje em nossa Bíblia.
            Por certo, o mais óbvio de tudo, a primeira coisa que constatamos ao ler um escrito da Bíblia é o fato de estar escrito em um idioma, com uma gramática - que lemos em uma tradução -, com maneiras de pensar e de expressar-se freqüentemente distintas das nossas e que falam de situações, histórica e culturalmente, diferentes das que vivemos. Quer dizer, o mais evidente é sua dimensão humana. Todo o mundo concorda em admitir que a Bíblia é literatura - literatura religiosa, sim, mas literatura. É por aqui que começaremos nosso esforço por conhecer e compreender a Bíblia: por sua dimensão mais evidente, a humana.
            O menos evidente a respeito da Bíblia é que ela é palavra de Deus ou que provém de inspiração divina, visto que afirmar isso pressupõe assumir uma atitude de fé: não é um dado objetivo. Prova disso é que nem todos reconhecem a Bíblia como palavra de Deus, mas a reconhecem como literatura. Afirmar que a Bíblia é produto de inspiração de Deus é atribuir uma qualidade que não é nem objetiva nem evidente em si mesma e que somente se admite com a fé, como pessoa que crê. Por isso, logo na Segunda Parte falaremos desta dimensão da Bíblia.
            Por que não começar pela "inspiração", como é tradicional? Primeiramente, para não prejudicar o que possamos descobrir a respeito da Bíblia em sua dimensão humana: seu caráter literário, a história de sua formação e composição etc. Em segundo lugar, porque, ao falar da inspiração da Bíblia como palavra de Deus, teremos de levar em conta tudo o que descobrirmos a respeito da dimensão humana da Bíblia - assim evitamos a tão freqüente tentação de forçar os dados para acomodá-los a preconceitos e dogmas. Mover-nos-emos, então, daquilo que é mais evidente para o menos evidente.

            É necessário estudar a Bíblia?

            Como costuma acontecer com qualquer matéria sobre a qual conhecemos pouco ou nada, o estudo dela nos informará e ilustrará, nos salvará de possíveis erros de julgamento e nos ajudará a compreender a matéria em questão.
            A grande maioria dos "problemas" que surgem em torno da Bíblia, as interpretações ingênuas, até os escândalos diante de certas afirmações feitas por estudiosos da Bíblia, têm sua raiz, nem mais nem menos, em uma deficiente compreensão da natureza mesma da Bíblia. A idéia que temos da Bíblia como tal reflete na maneira como entendemos e explicamos qualquer passagem dela. As diferentes interpretações que se dão nos diferentes grupos cristãos - e mais ainda o que os separa - devem-se fundamentalmente a diferenças em sua apreciação da natureza da Bíblia e, em não poucos casos, se devem à ignorância do que é a Bíblia. A seriedade deste assunto para a Igreja Católica revela-se pelo fato de que a Pontifícia Comissão Bíblica se pronunciou, em 1993, a esse respeito com um vasto e claro documento, apresentado formalmente pelo próprio Papa: "A interpretação da Bíblia na Igreja".
            É notório que em muitos grupos fundamentalistas (VEJA O ARQUIVO: MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA - F. Leitura fundamentalista ) se recusam a estudar criticamente a Bíblia, isso quando ela não é tomada a priori e sem questionamentos em sentido estrito como a palavra vinda diretamente do próprio Deus,quer dizer, sem outra participação humana que a do "secretário". Seu chamado "estudo bíblico" limita-se a conjugar múltiplas passagens da Bíblia para fundamentar doutrinas, a reconstruir os detalhes históricos de algum relato, do tipo "E a Bíblia tinha razão" (W. Keller), e não poucos programas de TV ("O mundo da Bíblia"), ou a fazer interpretações moralizantes ou piedosas de determinadas passagens, mas não é um estudo histórico-crítico dessas passagens bíblicas: de sua origem literária, histórica e circunstancial, dos condicionamentos situacionais e culturais daquele momento, daquilo que o texto significava naqueles tempos para seu auditório original etc.
            A necessidade de estudar a Bíblia para compreendê-la corretamente depreende-se do simples fato de que se trata de um conjunto de escritos que se originaram e foram compostos há muitos séculos e em um ambiente cultural muito diferente do nosso. Isto já se observa na linguagem: os termos, circunlóquios e expressões são de outra época e de outra cultura, como o são muitos dos conceitos e imagens que encontramos nos escritos bíblicos. Ingenuamente, muitos pensam que nossos conceitos e nossa visão ocidental do homem, da natureza, do mundo, de Deus etc., são iguais àqueles dos tempos bíblicos (orien­tais). Foram precisamente os estudos sobre o mundo da Bíblia os que colocaram a descoberto as grandes diferenças culturais e conceituais.
            Em síntese, para compreender e interpretar corretamente a Bíblia, é necessário um mínimo de estudo a respeito dela, da mesma maneira que é necessário estar familiarizado por meio do estudo com o mundo de qualquer documento da Antiguidade. Não basta saber ler para poder compreender o que se quis dizer e as razões pelas quais se escreveu naqueles distantes tempos esse texto que lemos ainda hoje.
            Isso significa que a Bíblia é somente para os estudiosos, ou que sem estudá-la não é possível compreendê-la? Sim e não. Se não sei nada de economia, não entenderei as páginas que se podem ler nos jornais sobre esse tema, ou talvez entenda pouco ou entenderei mal algumas coisas, crendo que as entendo bem. Quanto mais informado eu estiver, melhor poderei compreender. O exemplo mais claro é a leitura do Apocalipse: sem a informação necessária sobre o mundo do autor, muitas coisas parecem incompreensíveis ou se entendem erradamente. Por certo, isso não significa que tudo seja incompreensível na Bíblia. De fato, hoje, muita coisa é facilmente compreensível, especialmente quando se trata de vivências e de experiências que são comuns a todo ser humano, parte das vicissitudes da vida, apesar do tempo ou da cultura. Mas é necessário, sim, o estudo da Bíblia, de seu mundo, quando sua compreensão é essencial para a reta interpretação em matéria de doutrina ou de ética, pelas razões expostas. A falta de estudo informado da Bíblia e de seus condicionamentos históricos e culturais leva, por exemplo, a proibir a transfusão de sangue (Testemunhas de Jeová). E pessoas morrem! Para interpretar corretamente, tenho de compreender corretamente; e para compreender corretamente, tenho de ter a informação necessária. Os resultados dos estudos feitos pelos peritos biblistas estão ao alcance dos interessados, pois se publicam e se encontram em livrarias. Mas, não é necessário seu estudo, se a Bíblia for lida como meio ou veículo de comunhão com Deus, quer dizer, para a meditação e para a oração em qualquer de suas formas. Ao usar a Bíblia para a oração, a gente não a analisa, mas se deixa guiar, conduzir, inspirar por ela. Em poucas palavras, quando se trata de afirmações conceituais baseadas na Bíblia, especialmente sobre doutrina e moral, mais vale que estejamos bem informados sobre ela, se não quisermos arriscar-nos a nos equivocar. Isso supõe entrar no mundo do estudo como descrevi e como veremos mais amplamente. Quando se trata de usar a Bíblia para o enriquecimento espiritual, não é necessário seu estudo, aliás pode ser até um obstáculo. De um modo ou de outro, vale a advertência de que devemos evitar cair em historicismos e que o que devemos buscar é fundamentalmente a mensagem do texto - e este lido em parágrafos, não em frases soltas.

            Importância da Bíblia

            A Bíblia é importante para os que crêem, não somente porque ela é citada freqüentemente, ou porque se apela a ela como guia e luz, mas porque nela se encontram os fundamentos e as razões para nossa fé.
            Se a fé é essencialmente uma relação de diálogo e de confiança entre o homem e Deus, então é necessário conhecer esse Deus. É precisamente nos testemunhos que constituem a Bíblia que Deus se dá mais claramente a conhecer; é mediante sua leitura que Deus nos questiona e nos convida a confiar-nos a ele; e é na Bíblia que encontramos expressa a vontade salvífica de Deus e a orientação de que necessitamos para nossa felicidade. O Deus em quem colocamos nossa confiança é o mesmo Deus de que a Bíblia fala como o Deus de Abraão; de Isaac, de Jacó, de Moisés, de Isaías e de Jesus Cristo, não outro "ser supre·· mo" nem uma projeção filosófica ou psicológica.
            Para evitar que nos criemos uma imagem de um deus não existente, um "deus dos filósofos" (Pascal) ou da imaginação, projeção dos anseios mais profundos do ser humano, de sua auto-afirmação (Freud, Nietzsche), é necessário conhecer esse Deus. É do verdadeiro Deus que se fala na Bíblia. Nele os profetas e Jesus puseram sua fé e com ele entraram em íntima comunhão, um Deus que se vem manifestando na própria história humana, parte da qual está consignada precisamente na Bíblia.
            Em sua condição de meio para o diálogo com Deus, a Bíblia apresenta-nos respostas às perenes perguntas sobre nossa origem, missão, lugar no mundo e razão de existir; as perguntas em torno da dor, do mal, do destino etc. As perguntas existenciais de hoje já foram propostas ontem, e na Bíblia encontramos respostas a elas vistas a partir da fé no Criador e Senhor de tudo.
            A Bíblia é especialmente importante para o cristão. Ser cristão é essencialmente ser discípulos de Jesus Cristo. Mas, para poder sê-lo de verdade, sem desvios nem ilusões, é necessário conhecer tanto o próprio Jesus Cristo como o caminho que se deve seguir com o discípulo seu: "Quanto a ti, vem e segue-me!". Como alguém pode seguir a quem não conhece? Para conhecer a Jesus Cristo, nós nos vemos remetidos ao Novo Testamento, que nos oferece testemunhos daqueles que estiveram mais próximos dele e partilharam com ele a vida e a missão evangelizadora. E para conhecer a particularidade de Jesus Cristo, é necessário conhecer o Antigo Testamento, que era a Bíblia de Jesus e de seus discípulos. A descoberta das Escrituras é a descoberta de Cristo.
            A importância da Bíblia para certos grupos e seitas não é bem conhecida: é a única norma, com base em que julgam toda religião. E se vamos dialogar com eles, não nos resta outro caminho além da referência que compartilhamos com eles: a Bíblia. Em muitos setores do catolicismo, tem-se revalorizado a Bíblia como fonte de nossa fé, e, de fato, não podemos nem devemos desvalorizá-la como tal. Toda teologia, todo escrito religioso, toda oração tem direta ou indiretamente sua raiz na Bíblia. O que sabemos a respeito de Jesus nos vem do Novo Testamento. Por isso, pode-se afirmar que a Bíblia é a partida de nascimento do judaísmo (se se limita ao AT) e do cristianismo (se se inclui o NT) - não é que tenha nascido da Bíblia, mas dá testemunho de sua origem e de sua natureza.
            O cristão (e o judeu) tem muitas razões para querer estudar a Bíblia em seu afã por melhor conhecer as raízes e fundamentos de sua religião. Pode-se querer estudar a Bíblia também por razões simplesmente culturais: nossa cultura ocidental foi fortemente marcada pelo pensamento judaico-cristão, cujas raízes estão na Bíblia. A mesma coisa se pode dizer sobre o estudo da Bíblia como fonte de informação histórica, como expressão de uma corrente filosófica, como testemunhos da literatura de um povo etc.

            O que é a Bíblia?

            A palavra "Bíblia" é grega; significa "livros, escritos, documentos" (no plural) - o singular é "biblos" ou "biblion". Este substantivo passou tal qual para o latim e daí ao português, como se se referisse a um só livro, no singular. Vemos que o termo mesmo originalmente designava um conjunto de escritos, não apenas um. E isso é correto, pois a Bíblia é um conjunto ou coleção de escritos que para nós estão con­venientemente reunidos em uma só encadernação, e por isso costumamos pensar que se trata de um só livro. Mas não foi assim no início.
            Na Antiguidade, os diferentes escritos que agora constituem nossa Bíblia eram rolos ou papiros independentes uns dos outros. Quando se lia um "livro", tirava-se somente esse, e não toda a "biblioteca". Quando Jesus foi a Nazaré e entrou na sinagoga, diz Lucas, "lhe entregaram o livro (biblion) do profeta Isaías. Ele o abriu e encontrou a passagem em que estava escrito ... " (4,17). Estas simples observações nos esclarecem algumas realidades:
        = os diferentes escritos foram compostos em diferentes tempos e por diferentes pessoas;
            = nem todos são do mesmo gênero literário: alguns são história, outros são profecia, outros são lírica, outros são carta;
            = ocasionalmente encontramos repetições de temas, às vezes notamos tensões ou incoerências, até mesmo contradições entre um e outro escrito sobre este ou aquele aspecto (devido precisamente ao fato de serem obras independentes).
            Um exemplo, que ilustra a conseqüência que o descobrimento do fato de que os escritos bíblicos existiram como unidades autônomas acarreta, é proporcionado pelo Apocalipse, onde no final lemos a advertência:
            "A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro (biblion) eu declaro: se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro (biblion) ... " (22,18ss).
            Com freqüência, "este livro" é interpretado como referência a toda a Bíblia, assumindo que a Bíblia foi escrita desde suas origens com os "livros" um depois do outro e na ordem na qual os temos agora, sendo o último o Apocalipse. Mas o autor do Apocalipse não sabia que sua obra seria eventualmente colocada dentro de uma coleção, e menos ainda que estaria no final dela. Evidentemente, ao mencionar "este livro" (to biblion), João se referia exclusivamente ao Apocalipse e não a toda a coleção que conhecemos como "Bíblia".
            Por razões práticas, com o tempo, foram copiados os grandes rolos em "folhas" menores (papiros ou pergaminhos), eventualmente de ambos os lados, que podiam juntar-se, formando assim uma espécie de livro. Desde relativamente muito cedo, os cristãos optaram pelos códices, quer dizer, pela escrita em folhas soltas escritas em ambos os lados, que permitiam um formato prático e pouco volumoso, sobretudo para o transporte. Isso tornava possível incluir vários escritos em pouco espaço ou em volumes sob uma só encadernação. A Bíblia é, então, uma coleção (ou biblioteca) de escritos.
            Para o crente, a Bíblia não é somente uma coleção de escritos, mas é, além disso, a palavra de Deus. As diferentes maneiras de entender a Bíblia dependem diretamente da maneira como se entende sua composição e sua condição de palavra de Deus. Para alguns, ela significa que Deus mesmo, de alguma maneira, "ditou" a Bíblia, é seu autor e, portanto, deve ser tomada ao pé da letra. Outros, tomando a sério seu caráter literário, reconhecem que Deus não ditou a Bíblia, mas que ela foi composta por pessoas com uma cultura, mentalidade, interesse, educação, e que viviam em uma situação determinada, que estavam em estreita comunhão com Deus. Vale dizer, do ponto de vista de sua natureza, para o crente, a Bíblia tem "algo" a ver com Deus, que está em sua origem, e isso nós qualificamos com a expressão "palavra de Deus", tomada dos profetas. E se admitirmos a plena participação humana, acrescentaremos a qualificação "em palavras de homens".
            Afirmar a origem divina da Bíblia em forma estrita e absoluta, como se tivesse caído do céu ou como se Deus mesmo a tivesse escrito, utilizando certas pessoas como instrumentos seus, e assim negar a dimensão humana, é um indício da incompreensão da natureza da Bíblia. Por outra parte, reconhecer e afirmar a humanidade dos escritos bíblicos não é negar seu caráter divino, mas antes situá-los cabalmente dentro das coordenadas de onde surgiram: a história dos homens. Finalmente, do ponto de vista de seu conteúdo, a Bíblia é um conjunto de escritos que são o produto e o testemunho da vida de um povo (Israel/AT) e de uma comunidade (cristianismo/NT) em diálogo com Deus. São testemunhos de fé dessas pessoas, fé vivida em um mundo real, o de sua época, no Oriente Médio. Esta descrição da natureza da Bíblia é importante, e sua veracidade só se pode apreciar quando se lê com imparcialidade.
            Sintetizando o que foi exposto, podemos dizer que a Bíblia:
            = é um conjunto de escritos (note-se: "escritos", não "livros", pois a Bíblia inclui cartas, por exemplo),
            = que de alguma maneira tem sua origem em Deus: são "palavra de Deus" (sem nos pronunciarmos por enquanto sobre a maneira como tem sua origem em Deus, como se transmite ou em que deriva),
            = e cujo conteúdo é constituído por múltiplos testemunhos de fé vivida por diversas pessoas e comunidades em diferentes tempos e diante de distintas circunstâncias.



                    Arens, Eduardo - A BÍBLIA SEM MITOS: UMA INTRODUÇÃO CRITICA – São Paulo: Paulus, 2007. pp 17 – 27.